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Sagrado Feminino e o Feminismo 

distinções e conexões: Manifesto para o fim da misoginia e o fortalecimento da sororidade entre mulheres.

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* Este texto foi escrito em 2015 diante da necessidade de transpor as fronteiras entre o feminismo e trabalhos sobre o feminino, que naquele momento, se mostravam antagônicas. Por isso, o texto pode ter um tom didático em relação às formas mais atuais e elaboradas dos estudos de mulheres, mas foi escrito numa reação às resistências constatadas por parte de algumas abordagens de trabalhos com o sagrado feminino que 'ainda' ignoravam abordagens sobre políticas do corpo, direitos humanos e dinâmicas estruturais ecossistêmicas e ecofeministas de coletividade que desafiam a cultura vigente ocidental.  Aqui, pretendemos tecer saberes e fortalecer o trabalho de ativistas comprometidas atuando no campo da individuação da psiquê feminina, e que apoiam muitas mulheres que sofrem abuso ou são oprimidas em alguma área de suas vidas, e que se preocupam com as questões da mulher contemporânea.

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MOVIMENTO MUNDIAL DE MULHERES - FEMINISMO

Na primeira onda do movimento mundial de mulheres, que ocorreu no final de século XIX com os impactos da revolução industrial, bravas guerreiras desafiaram o status quo patriarcal, ou a não participação da mulher das decisões na vida pública, e lançaram verdadeiros compêndios escritos sobre a condição de sua opressão histórica e o sufragismo. Auroras como Simone De Beauvoir (O SEGUNDO SEXO) e Clara Zetkin (MANIFESTO SUFRAGISTA) deixaram grande legados para a transformação social e trabalhos de base.

A segunda onda do movimento mundial de mulheres, ocorrida entre as décadas de 1950 e 1970, veio como uma resposta de repúdio radical às formas opressoras do machismo de raízes profundamente patriarcais, e foram conhecidas como as queimadoras de sutiãs. Na década de 1970,  como uma espécie de grande despertar espiritual, ocorreram as descobertas arqueológicas de Marija Gimbutas das civilizações ginecêntricas (estruturadas no princípio feminino dos ciclos da natureza) da Era do Bronze onde sítios arqueológicos foram escavados e provaram a existência de sociedades com cerca de até 15.000 pessoas na região da Europa Antiga. De acordo com Gimbutas, estas sociedades viveram cerca de 5.000 anos sem deixar vestígios de guerras (não foram encontradas armas) e suas organizações eram comunais e voltadas à reverência das manifestações cíclicas femininas da terra ligadas à fertilidade e à Deusa. 

 

O patriarcado é uma categoria política que se sustenta na distribuição desigual de privilégios, separando seres entre homens e mulheres,  brancos e negres/origináries, que visa a exploração predatória da terra e da mulher, dividindo a existência humana em dois universos: o público e o privado. O universo público, ou da macropolítica, é determinado pelas grandes estruturas institucionais de poder da sociedade, e foi associado ao universo masculino, das guerras e do controle do estado regendo a organização da própria sociedade, a nossa “grande casa”. Já o universo privado, ou das micropolíticas, foi largamente associado com as situações domésticas, das pequenezas do cotidiano, e da comunidade, que hoje depois do feminismo são “mais” entendidas como organizações que também ajudam a definir o que é formal ou informal, legal ou ilegal. Porém, antes do movimento feminista, o universo privado, quando muito, era relegado ao universo doméstico e feminino, às questões da sexualidade e das relações maritais delegando uma falsa soberania da mulher dentro de casa.

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O pessoal é político

O movimento feminista sofreu e ainda sofre uma repressão muito grande justificada por ideias sobre o histerismo, em que a mulher, ao solicitar seus direitos à esfera pública, ou seja, ao exigir fazer parte das decisões sobre a “grande casa” onde moramos - nossa sociedade - foi e  ainda é considerada indevida, fora de lugar, histérica e “precisando de falo para se acalmar” seguindo uma lógica falocêntrica machista. O feminismo que, no início, foi considerado um movimento de "guerra contra os homens”, foi mal interpretado e perpetuadamente iconizado por (pré)conceitos que dizem que o feminismo é um movimento “machista ao contrário”. Erradamente foi estabelecido no senso comum alienado que o feminismo significa as mulheres contra os homens.

 

Mas, se num primeiro momento, o feminismo veio como força radical foi porque necessitava estabelecer um território de negociações que fora milenarmente suprimido pelo regime e cultura patriarcais, e não seria dizendo “com licença, posso entrar” que ganharia espaço. A mídia e os intelectuais (machistas) trataram de crucificar as feministas como mulheres indevidas e sem espaço na sociedade, excluídas por seu comportamento, digamos, mal educado, indevido e exagerado. Mas sua voz (feminista) era para esculpir justamente espaços na sociedade que hoje foram conquistados com muita luta, inteligência astuta e protesto. Então, o patriarcado, a cultura machista e todas as pessoas que não entendem como eles operam por meio da MISOGINIA, deslegitimam a própria luta das mulheres e de outras categorias marginalizadas quando desarticulam suas vozes ainda afirmando que feministas possuem comportamentos inadequados, deslocados ou indevidos.

 

 

MISOGINIA

Façamos uma pequena pausa para discutir o que é a misoginia. Do grego miso (ódio) e gyne (mulher), define um distúrbio individual ou coletivo em que as mulheres são vistas como seres inferiores, destruidores, odiosos e/ou desmerecedores. Em 1989, Susan Forward escreveu seu livro “Homens que odeiam suas mulheres, e mulheres que os amam”, onde primeiramente fala sobre o amor romântico, aquele vertiginoso e cheio de projeções do animus e anima (que mais tende a ser uma queda no abismo, emocionante porém fatal). Por trás das análises que a autora faz em diversos depoimentos de mulheres que viveram uma relação de abuso com seus parceiros, o conceito mais relevante explorado por ela é o da misoginia, que nada mais é do que a tendência comportamental, individual ou coletiva, de julgar mulheres apenas por serem mulheres.

 

A misoginia também é coletiva, portanto, é um erro acreditar que apenas homens podem ser misóginos, e este é justamente o maior perigo desta patologia cultural. Há muitas mulheres misóginas que julgam outras mulheres, sem o saber crítico de que estão reforçando e operando um padrão de comportamento misógino e exclusivista.

 

Quando, por exemplo, uma mulher que acredita que feministas são indevidas porque elas lutam contra os homens (que elas são "machorras") e ela acredita mais no alinhamento dos "papéis" homem-mulher pregado, inclusive, pelo sagrado feminino, ela demonstra que não apenas não sabe o que é feminismo, mas também não sabe o que é sagrado feminino.

 

O SAGRADO FEMININO

Um primeiro estranhamento crítico sobre o termo sagrado feminino seria o de pensar sobre a palavra "sagrado", termo que deveria estar mais relacionado às práticas de espiritualidade ou religiosidade. O sagrado é aquilo que conecta o ser à uma dimensão mais elevada, extraordinária. Num tempo de luta e injustiças como o agora, a dinâmica de afirmar que o sagrado feminino equivalia a "mulher sagrada" aconteça, talvez, porque exista uma necessidade afirmativa de elevar a mulher a um patamar de divinização como forma de conquista de espaço, ou de cura de sua psique e autoestima, ou de ativismo de gênero. Em qualquer destes casos, pergunto, haveriam diferenças entre os benefícios públicos e privados desta dinâmica de transformar a própria espiritualidade ou religiosidade num ato esvaziado de seu significado extraordinário? Divinizar a mulher como sagrada é necessário para a sua retomada de poder, porém, divinizar a mulher como sagrada tornando-a sagrada o tempo todo, pode criar uma forma de ilusão que a aliena da vida pública. A ideia de que o divino tem mais força que o humano, deixa à deriva o próprio poder autônomo de ação imediata, ordinária e mundana, podendo isolar aquele “ser divino” da esfera humana, e ainda cria noções de privilégio e proteção irreais e alienadas, sem perceber que ainda há muito trabalho a ser feito para conquistarmos um mundo melhor, para todos os seres humanos. Há, sim, uma necessidade de reparação dos anos de práticas misóginas, e façamos isso no plano simbólico, abstrato, mas também de forma concreta, com ações transformativas. 

 

Então, há que se entender que o sagrado feminino que nos relacionamos aqui não se refere a “reduções” ou “essencialismos” que determinam os "papéis" do homem e da mulher, que devem fazer tais e tais tarefas na casa e na sociedade. O sagrado feminino, aquele que se refere ao intuitivo selvagem - de autoras como Clarissa Pinkola Estés, Marija Gimbutas, Jean Shinoda Bolen, Starhawk, Ethel Morgan, e tantas outras - refere-se às energias sutis e aos arquétipos que relacionam o comportamento do ser humano aos movimentos da natureza, às tradições matrifocais e às estruturas míticas. O sagrado feminino aqui entendido é uma forma de orientação do indivíduo aos processos mais elevados para entender a vida em relação aos seus ciclos, e ao combate aos movimentos auto-predatórios da psiquê. Já o feminismo é uma forma de organização social que reclama o espaço da mulher na vida política, pública, delineando privilégios de forma igualitária, e desarticulando a ideia de que o corpo da mulher é território de dominação e controle.

Eles diferem-se entre si em diversas instâncias, mas para colocar de uma forma simples, pode-se afirmar que ambos são formas de orientação: o feminino sagrado orienta o indivíduo (vivendo em sociedade) para transformar a vida como um ato ético pela grandeza do próprio individuo de se auto-desenvolver em harmonia com os seus ciclos naturais e os ciclos da natureza, e o potencializa por meio de ritualizações. Já o feminismo faz um movimento quase inverso, pensando através das (infra)estruturas sociais, em como se chegar ao bem-estar dos indivíduos vivendo em sociedade e apontando desigualdades normalizadas ou institucionalizadas pelas mesmas. E ambos são necessários para a cura completa do planeta.

 

Todos os discursos redutores que falam sobre o feminino como se fosse algo de propriedade das mulheres, já partem de um pressuposto errôneo afirmando que a mulher “é” o feminino. O feminino seria uma FORÇA associada aos fenômenos da natureza, tais como os ciclos; as marés; as mudanças – que são diretamente associadas as mulheres por conta de sua própria natureza cíclica e mutante. Mas muitos homens atualmente também são femininos e feministas, demonstrando que é uma confusão generalizada achar que o sagrado feminino e o movimento feminista são opostamente dissociados, e que ambos são de “propriedade” da mulher.

 

Ora, se “propriedade” é justamente o que o patriarcado evoca, em contra-posição ao coletivismo (re)clamado pelo feminismo, então discursos intolerantes apropriando o feminino exclusivamente às mulheres e que se colocam contra o feminismo sem realmente entendê-lo, apenas fazem reforçar as lógicas patriarcais. Portanto, em nosso momento histórico (atual), ao contrário dos pensamentos pejorativos e separatistas, o sagrado feminino e o feminismo andam juntos, e são  absolutamente complementares. Tal é que o maior símbolo do feminismo contemporâneo é o batom vermelho e a mini-saia (símbolos que representam mulheres "femininas"), e do feminino é a pureza dos "seios de fora" amamentando (mesmo símbolo das feministas queimadoras de sutiã dos anos 1960); movimentos que se apropriam em suas imagens iconográficas demonstrando formas de conexão, demonstrando os espaços intersticiais e fronteiriços entre eles. 

 

Hoje em dia ainda se escuta muitos comentários desinformados sobre o que é o feminismo, determinando-o a aquele espaço de loucura, ou inadequação, ou “mal-amação” para as feministas, tipo “aceito-as mas não perto de mim, por favor” ou “tadinha, virou feminista, deve ter sofrido uma perda horrível ou estar precisando” subentendendo-se “um pinto”.

 

Em se refletindo sobre se são as mulheres ou os homens que estão no poder, há que se refletir também sobre o PODER, sua sombra e sua luz - na sombra, aquele que é orientado pelo patriarcado que incita disputa entre mulheres, o que se difere em lógica quando na luz que empodera mulheres que trabalham em sororidade, aquele que o sagrado feminino promove. Para mudar a lógica de poder patriarcal, não adianta mudar o “sexo” dos governantes, há que se mudar a lógica de se entender a organização social, o sistema (atualmente capitalista) globalizado que nos rege, ou seja, há que se entender da esfera pública (a nossa “grande casa”, TERRA organizada em sociedades), buscando dinâmicas de solidariedade, amorosidade, comunidade, educação e bem estar para todos os seres. Há que se estudar as políticas e trabalhar coletiva e colaborativamente. Há que se entender que o que acontece com os mais pobres e marginalizados nos diz respeito, que o que estão fazendo com o planeta nos diz respeito, e que as pequenas corrupções e cegueiras cotidianas são parte de um todo. Que nossas atitudes e posicionamentos são atos políticos e causam impacto. Há que se entender o que significa "público", ou seja, se uma mulher usa seu corpo num movimento de conquista de espaço, deve usar de forma inteligente e perspicaz articulando transformações sociais e discursos, senão, pode acabar reforçando a lógica da mulher-objeto, aquela mesma "desejada, e esvaziada" que vende cerveja no outdoor.

 

Se queremos mesmo lutar por uma transformação real, apoiemos aqueles que vem pensando em nossos sistemas: as feministas, as pessoas estranhas, os marginalizados, as classes mais desprivilegiadas, os ativistas, pois eles estão a fazer o trabalho de formiguinha capaz, talvez, de mudar algo para melhor em nossas organizações coletivas. O efeito borboleta começa sempre de um ponto, que pode ser cada um de nós.

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